O Bicho
Vai. Fica aí com a sua altivez. Engole a seco a sua brincadeira de viver. Deixa a sua alma roer aos poucos e explodir, por causa da pressão atmosférica, já que você vai subir tão alto, ainda. Tão alto e tão longe, e tão sozinho: não leva consigo sequer o rosto dos que cruzaram os teus caminhos. Lembrar dói e atrasa, não é assim? Amar faz o relógio deixar de funcionar. Amor é fraqueza, é doença. Sentir é para os imoderados. Então, já que é assim, fecha a tua janela, porque está entrando muita luz através dela, e a luz te cega. Luz não é bom. Você gosta de andar sabendo onde pisa, e a linha do horizonte te assusta. Seus pés só conseguem sentir o concreto, o chão frio e duro. A tua pele só sente frio. Ou nada sente. A sua língua é seca e você não tem paladar. Os seus olhos são treinados para ver apenas aquilo que você quer. As suas mãos foram feitas para destruir imediatamente tudo aquilo que acabou de construir. Você anda em linha reta e programada, e enquanto anda, não vê nada do lado direito e não vê nada do lado esquerdo. E deixa tudo o que está atrás, se apagando aos poucos da sua macro-memória como um vídeo-game em 3D. A sua música é o caos. São as buzinas, barulho de trem, de motor, de escapamento de carro. Você respira pouco e um ar que é só seu. Os seus pulmões são pretos. Você só tem um rosto e as suas sobrancelhas não se erguem. A sua boca está seca e você não sente sede. Suas mãos não tocam as outras e os seus dedos são rígidos. Você não gosta de se olhar no espelho, já que nunca vai aparecer nele sozinho. Você tem rugas na testa. Você tem rugas no peito. Você não tem mais nome e não tem forma definida. Você é perecível. Você é daltônico. É o cinza. A sua parede está rachada e o cimento descama. Você causa silêncio. Você emudece. Você assusta. Você é uma máquina sem engrenagem. Você não é. Então vai e segue a sua sombra até o sem-fim. O seu caminho não tem fim e não tem começo. Entra na corrida daquilo que só você compete. Finge que chegou onde quer. Finge. Você esqueceu de onde veio e não sabe mais pra onde vai. Se vai. Come tudo aquilo que você construiu. Come a si mesmo, também. Sente o seu gosto insosso e cru. Fica procurando um gosto bom em alguma parte de si mesmo. Mas presta atenção! Pode ser que você vomite. Primeiro porque você é homem. E segundo, porque vai descobrir que está sozinho: aos outros, você já comeu. Melissa Brienda Sliominas.